Por Sylvio Roque de G. Horta
Ao lermos um livro - de cem, duzentos, mil anos atrás -, corremos o risco de entendê-lo demais, isto é, de entendê-lo a partir do nosso contexto, causando assim uma distorção da história. O contexto óbvio para o leitor da época é sombra para nós. Como ler Platão tendo presente um mundo sem luz elétrica, sem televisão, sem automóveis, sem cristianismo, sem os dois mil e tantos anos de história que nos separam? Como se vestiam, como soava a língua grega, qual o "clima" da época. Muito da ciência histórica, não é mais do que esse esforço de adquirir sentido histórico. Sentido que nos possibilita uma perspectiva que se dá conta de si mesma e, portanto, mais adequada, menos distorcida, capaz de filtrar do fluxo presente o depósito do passado.
Olhando, agora, de outro viés, esse problema da leitura - não através dos limites aparentemente negativos, mas por aquilo que tem de fantástico conjuntamente com a invenção da escrita e sua consolidação nos livros, veremos que a escrita foi e ainda é a técnica que possibilitou as mudanças mais radicais pelas quais já passou a história .
A importância do ler e do escrever também aparece nas considerações sociais. Dá-se uma importância especial para a educação de cada sociedade, usando-se como referência para a medida o grau de analfabetismo da população. Ler e escrever, hoje - não se perca de vista que nem sempre foi assim -, é parte integrante da realidade humana. A princípio, se é menos homem quando não se sabe ler e escrever .
Com a escrita o homem pôde acumular memória, a experiência vital pôde ser objetivada; o que se passava de boca à boca, o passado foi arquivado em formas que seriam inimagináveis se tivéssemos contado apenas com formas orais - poesia, contos, etc. Com a escrita e depois com a difusão do livro, houve uma mudança radical na forma de pensamento e, também, na linguagem. E quando se fala em mudança de pensamento e linguagem não se deve esquecer que isso significa uma profunda mudança na estrutura da própria vida. Sinceramente, é possível se pensar na ciência ocidental antes da invenção da escrita? Como seria a física, ou a história, por exemplo, se tivéssemos apenas a fala para transmiti-las através das gerações? Será exagero relacionar escrita e formas de pensamento? E de ambas com a própria vida?
O que aconteceria, por exemplo, se eu quisesse ter uma idéia, um pensamento mais claro sobre a relação do livro/pensamento/vida? Perguntar para as pessoas ao meu lado? Claro, mas isso é passar o problema para o outro, o que pode ser valido, mas o que queremos agora é saber como posso eu pensar algo neste nível. Eu poderia recorrer a minha memória, mas por mais velho que eu fosse é muito pouco para se saber do passado. Vou sair andando pelo mundo catando resto de civilizações? Mas isso pressupõe muito conhecimento e, já é óbvio, esse conhecimento, nesse mundo concreto que vivemos, é conhecimento que se adquire lendo, lendo muito.
Ortega y Gasset, que segundo ele mesmo, chegou a ler 10 horas diárias, proferiu uma palestra (que virou livro) - A missão do bibliotecário -, de onde tirei alguns trechos que podem nos auxiliar nessa busca, pois não há nada melhor do que um bom livro, mesmo com seus possíveis erros, para nos orientar na selva cultural de nosso planeta que vem substituindo a vegetal, que vai se acabando.
"... Até o Renascimento, a necessidade do livro não era socialmente vigente. E porque, naquele momento, o foi, vemos surgir imediatamente o bibliotecário como profissão. Mas ainda podemos ser mais precisos. A necessidade do livro nessa época tem o caráter da fé, de fé no livro. A revelação, o que Deus havia dito e ditado ao homem, perde sua eficácia e começa-se a se esperar tudo do que pensa o próprio homem com sua razão e, conseqüentemente, espera-se tudo do que o homem escreva".
"Pois bem; a Revolução Francesa deixara transformada a sociedade européia detrás de sua melodramática turbulência. À sua antiga anatomia aristocrática, sucedeu uma anatomia que se dizia (sedicente*) democrática. Esta sociedade era a derradeira conseqüência daquela fé no livro que havia sentido o Renascimento. A sociedade democrática é filha do livro, é o triunfo do livro escrito pelo homem escritor sobre o livro revelado por Deus e sobre o livro das leis ditadas pela autocracia. A rebelião dos povos havia sido feita em nome de tudo isso que se chama razão, cultura, etcétera".
" ... Assim é que, por volta de 1840, o livro já não é meramente necessidade no sentido de ilusão, de esperança, mas que, sem Deus e volatilizada a autoridade tradicional e carismática, não sobra mais instância última em que se fundar o todo social senão o livro. Há, desse modo, que se agarrar a ele como a uma pedra de salvação. O livro torna-se socialmente imprescindível. Por isso, é essa a época em que surge o fenômeno das edições copiosíssimas. As massas se arremessam sobre os volumes com uma urgência quase respiratória, como se fossem balões de oxigênio. ... Sem ciências, sem técnicas, essas sociedades tão densas de população e com tão alto nível de vida não podem existir materialmente. Muito menos podem viver moralmente sem um grande repertório de idéias. A única possibilidade, por vaga que fosse, de que a democracia chegasse a ser efetiva, consistia em que as massas deixassem de sê-lo à força de enormes doses de cultura, entenda-se, cultura autêntica, brotando com evidência de cada homem, não meramente recebida, ouvida ou lida".
Esses pensamentos de Ortega, que pude ler graças ao livro que tenho em minhas mãos, são um bom exemplo de pensamento histórico, mas sendo Ortega, segundo Julián Marías, um dos dois maiores retóricos do nosso século - o seria Churchil - como seria se pudéssemos ter ouvido essa palestra, ou mesmo, assistido a palestra?
A escrita foi uma revolução tecnológica, mas o que acontecerá agora que a tecnologia para se fixar o que se ia com o vento ganhou novas dimensões. Não só é possível se imprimir com mais facilidade mas também ampliar o número de pessoas com acesso à informação. E o que é realmente novo é que agora podemos conservar o som e as imagens! Imagine-se como seria o nosso conhecimento dos trovadores se clicando um botão tivéssemos o acesso não apenas às letras de suas canções, mas às músicas e ao próprio cantor com seu instrumento. Imagine ouvir a Odisséia como era realmente cantada ou recitada pelos gregos.
Não é pouco o que se pode ganhar com isso, acredito que os homens darão um novo salto em matéria de conhecimento quase que inimaginável para nós (e, também, um salto de possível desconhecimento, como veremos daqui a pouco). Se ao estudarmos um período histórico como a Idade Média, por exemplo, tivéssemos o acesso aos melhores textos e ao toque de botões, conforme as dúvidas fossem surgindo, conectássemos a outros textos, dicionários, filmes sobre a época, fotografias exemplificando estilos arquitetônicos e modo de vida, etc., a nossa capacidade e velocidade de aprendizado, a capacidade de lidar com o excesso de informação, tudo isso iria sofrer - e já está sofrendo - uma transformação radical que alterará a nossa capacidade de pensar.
Nas ciências biológicas, um exemplo entre tantos outros, o desvendamento do código genético seria impensável sem as técnicas de cálculo do computador; seriam necessárias décadas de cálculo e análise para se chegar a resultados que se obtém em meses. Nas ciências humanas estão começando a aparecer os arquivos com as obras completas de pensadores. Posso pedir ao computador "procure a palavra corpo na totalidade das obras de x, e em poucos segundos tenho a minha disposição os textos e suas respectivas localizações... Quem não percebe aonde isso pode levar sofre de cegueira para o futuro ou teme os lados negativos que poderão surgir daí. Mas ninguém está dizendo que essas mudanças serão só para melhor, o que é evidente é que teremos que lidar com elas. Se a engenharia genética vai ser uma catástrofe ou não, dependerá em grande parte da nossa capacidade de pensar agora sobre isso e não fechar os olhos e fazer cara feia para o futuro que virá.
O mesmo texto de Ortega acima fala do livro como dificuldade, do perigo da falsificação pelo excesso de informação . O problema agora será muito mais grave ainda e poderá atingir um grau proporcional ao das possíveis vantagens. Mas há coisas que depois que surgem tornam-se inevitáveis, não se volta atrás. É possível abandonarmos a eletricidade? Há cem anos atrás era pouco mais do que uma idéia, hoje não se vive mais sem ela, a sociedade mesma se estrutura em volta das novas técnicas e passa a depender delas para a própria sobrevivência. Não se trata de se prometer o paraíso. O avanço das técnicas traz novas soluções e novos problemas, novas felicidades e infelicidades. Trata-se de se ver o que está acontecendo à nossa volta e nos preparamos para o salto que está por dar a humanidade com suas novas conquistas e seus novos problemas.
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